Herança escolar – por Suzane Lindoso

Quem não guarda boas lembranças de pelo menos um professor, que atire a primeira pedra. É isso mesmo. Cada um de nós deve trazer num canto qualquer da memória a figura, a voz, o sorriso, o jeito de olhar, a aula, a letra, o exemplo de – minimamente – um mestre.

O tempo em que se viveu esta experiência pouco importa. Já houve a escola extremamente rigorosa e punitiva, na qual o docente tinha sempre a última palavra e, não poucas vezes, a única palavra. Contudo, mesmo em circunstâncias tão áridas, os sentimentos brotavam, possibilitando laços afetivos invisíveis e não raro inconfessáveis. Mas nem sempre foi assim, pois com o tempo os alunos ganharam importância e a aprendizagem passou a ser o centro dos estudos pedagógicos. Com a mudança de foco, o rigor já não encontrava mais solo fértil. Reflexo direto sobre as relações entre os mestres e seus discípulos.

Os filhos da ditadura resolveram reescrever a história e dar um basta no autoritarismo. Era inadmissível que apenas professores, pais, educadores, enfim, decidissem. Era chegado o momento dos filhos, dos alunos. A sociedade vislumbrava um mundo novo que, não muito depois, se mostrou em nada admirável. Liberdade era o sentimento, a busca, a palavra de ordem.

Em nome dela muitos voos foram alçados, muros transpostos, desafios enfrentados à unha. Demandou tempo. Envolveu gerações. Somou-se a tudo isto o desenvolvimento econômico de muitos países, o crescimento dos ideais capitalistas, de consumo. A indústria pronta para realizar sonhos. A condição financeira concretizando-os.

Mas, e as escolas? Motivação. Tema constante nas reuniões docentes: Como despertar a motivação dos alunos? A escola deverá ser prazerosa. De preferência, pegando leve, partindo do conhecimento prévio do aluno, aberta ao contemporâneo.

É simples compreender. O que é clássico, antigo, distante do cotidiano moderno deve ser posto em segundo plano. Conceitos ultrapassados, palavras em desuso, objetos obsoletos. O novo, atual, moderno é muito mais motivador, pelas próprias características e pela proximidade. Não há como contestar.

Sim. Mas e a escola? Os temas, nas reuniões pedagógicas, passaram também pela educação bancária, construtivismo, inteligência emocional, projeto pedagógico, habilidades, competências.  A escola de hoje ainda busca a redefinição de papel, de status.

Como sermos professores motivadores se o grande arcabouço de conhecimento inclui também o antigo, o clássico? Como provarmos por A+B que as coisas adquiridas, na maioria das vezes com dinheiro, não podem ser a única meta de um ser humano? Como convencermos os adolescentes de que os recursos tecnológicos ultrapassam o MSN, as redes sociais? Que o Google é mesmo uma excelente ferramenta e que nos possibilita atividades outras que não apenas a cópia e a colagem? Que dominar a tecnologia vai muito além de tudo isso?

Mesmo diante de tantas mudanças, ainda é possível imaginar que os alunos de hoje levem em suas lembranças da escola a de um professor que foi marcante. A humanidade consegue manter-se em meio ao caos. Os laços afetivos, talvez ainda invisíveis, sobrevivem quais náufragos presos a tábuas de salvação.

A docência tem atraído cada vez menos interessados. O salário não é atrativo. A sociedade não vê mais na figura do mestre aquele que contribui para a formação de seus filhos. Os alunos não se veem no dever de respeitá-la. É vista como despreparada e mal colocada profissionalmente, por não terem dado certo em nenhuma outra profissão.

Como professora, desejo que nossas reuniões não mais se limitem a discutir o que fazer com os celulares que os alunos insistem em levar para as salas de aulas, mesmo havendo uma lei que proíba tal atitude; que as escolas não mais se vejam envolvidas em noticiários policiais, por agressões, desrespeitos, bullying; que nossos educadores não precisem enfrentar situações delicadas pela falta de autoridade dos pais, que esperam que a escola eduque seus filhos, mas que não permitem quando ela tenta.

Sonho com uma escola que defenda a liberdade; que seja contemporânea, moderna;  que, sobretudo, resgate seu status de local do saber, que inclui tudo o que foi construído até nossos tempos; status de ambiente de aprendizagem, de crescimento, de partilha. Enfim, sonho que nós, professores, possamos fazer parte do legado da escola e não apenas de estatísticas.

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A autora:

 

Pernambucana de nascimento, piracicabana de coração, Suzane Lindoso é professora de Língua Portuguesa do Colégio Piracicabano.

 

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30 thoughts on “Herança escolar – por Suzane Lindoso

  1. Suzane, nosso coração tem que ser imenso para guardar dentro dele tantos professores maravilhosos que tivemos, cada um com seu jeito único de ser, mas que marcaram nossa vida.
    E nos dias de hoje, está cada vez mais difícil, para esses abnegados e perseverantes lutadores, exercer a profissão.
    Parabéns!

    Ivana Negri

    1. Sorte nossa, Ivana, que nosso coração é mesmo imenso para guardar tantos nomes, tantas pessoas, pois somos hoje a soma do pouco que captamos de cada uma.
      Obrigada por suas palavras.

  2. Muito bom Suzane, como sempre! Esse tema que você traz precisa mais e mais ser refletido hoje. De imediato, após ler o seu texto, fui despertada para uma série de questões: qual a relevância do/a mestre para os/as educandos? quais são as “pegadas” que ele/ela deixa na sua trajetória profissional? Como a sociedade vê hoje os/as educadores/as? Qual o seu lugar na escola?
    Lembro com carinho e muita consideração vários/as professores/as pelas quais passei. A primeira foi a minha própria mãe, ela era alfabetizadora na escola onde fiz o Curso Primário, por questões evidentes não vou dizer em que ano isso aconteceu (rsrsrsrs), mas carrego comigo lembranças muito agradáveis.
    Bjs

    1. Sabe, Ana, tenho tido a imensa satisfação de ver o quanto as palavras podem nos levar a lugar inimaginados. Que bom que o texto levou a refletir! Mas também que bom ter levado-a a homenagear, através da lembrança, alguém tão importante.
      Abençoadas são as palavras.
      Um abraço fraterno.

  3. Querida mana, concordo com voce em toda as sua reflexoes, e como da area, vejo tudo isto acontecer e na maioria das vezes, ficamos sem acao e sofrendo as consequencias. Continue escrevendo e me orgulho de voce.

  4. Suzane, muito lindo! Amei! Parabéns!
    Seu texto confirma minhas preocupações com a educação e o “ser professor”,
    um ofício dão essencial à vida humana, e que sentimos como vem sendo desvalorizado pela sociedade, é uma pena! Pois esquecem que quem ensina os bons
    médicos, advogados,arquitetos, etc. são os professores, o seus mestres de ofício.
    O que falta hoje, na minha opinião, é as autoridades da educação ouvir mais os mestre deste ofício os professores, assim talvez poderemos tentar melhorar a educação.
    Um forte abraço.

  5. Nane, lembro de vários professores sim. Já no meu tempo eles já não eram tão valorizados. A sociedade não tem nocão de como desprezam aqueles que nos formam não só profissionalmente, mas pessoalmente. Sou filha de professor, irmã de professora, já fui professora e até minha sogra também é professora. Estou bem cercada!
    Bjs

  6. Dos professores que trago na memória guardo um carinho imenso por aqueles que me ensinaram não apenas a apostila escolar, mas o pelos livros. Que me fizeram ler Machado de Assis, George Orwell, Eça de Queirós, Maurice Druon, entre tantos autores que me ensinaram sobre os homens, sobre os sonhos, sobre a sociedade…entre eles, uma professora arretada de português na 5ª série que o Diário me permitiu reencontrar e que ainda hoje me faz refletir sobre a vida!

  7. Olá Su!!!

    Uma bela reflexão. Gostaria sinceramente que os pais pudessem ler este texto. Sempre lembramos com carinho das pessoas que fazem diferença em nossa vida. E com certeza você é uma delas. Obrigada pelos belos texto. Bjs com carinho,
    Adê

  8. Su,
    Como eu já previa, eu precisaria de tempo para ler esse seu texto…calma, reflexão, lembranças, angústias, alegrias e tristezas. Certamente despertou uma mistura de sentimentos. Nas minhas brincadeiras de criança sempre fui a professora. Sempre achei lindo ter responsabilidade sob a formação do outro. Hoje percebo o quão difícil é ver que os meus sonhos de criança não se concretizaram na totalidade…mas acredito muito nessa nossa bela e corajosa profissão. Vou insistir e continuar sonhando sempre!!!
    Obrigada por compartilhar mais um sentimento conosco. Um grande beijo!

  9. Oi Su,

    Continuo lerdinha com meus contatos virtuais…
    Amei o seu texto! Fiquei um pouco triste porque constatei que atualmente sonho muito menos…
    Adorei a imagem que ilustra seu texto. A nossa profissão parece estar “quebrada”, precisando ser reconstruida.
    Parabéns, um beijo,
    Vanete

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