Subsolo na garrafa – por Carla Ceres

 

O Diário do Engenho traz a público, em primeiríssima mão, o conto “Subsolo na garrafa,” da premiada escritora Carla Ceres. Esse conto, que tem aqui sua primeira publicação, acaba de vencer a 8a. edição do concurso de contos da 10a. UNICULT , promovida pela Universidade Metodista de Piracicaba.   

 

Subsolo na Garrafa

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DE ACORDO COM  RODRIGO 1:

Cidades são seres vivos. Cada uma com seu jeito de usar seus seres humanos. A minha se pensa grande e me envia de emissário a outros cantos distantes.

 Foi num dia em que eu andava muito sobrando de passos. Vontade de abrir caminho bem longe do meu portão. Andanças premeditadas forçavam amarras tantas de compromissos locais. Daí a cidade me veio e me mandou porta afora. Missão: ser outro bem longe.

Fui com pretexto de estudo, carregando marra e medo, morar junto de outros tontos, estudantes quanto eu. Republicano refúgio de trotes e altos porres.

Quase oitavo coma alcoólico, bate na porta um fantasma. Era uma freira de branco, dizendo que, em breve, um padre viria benzer minha alma que estava desencarnando na cripta do subsolo. Como assim “no subsolo”? Não temos porão nem cripta onde esconder meu cadáver. Gelei de fio a pavio. Senti tontura de medo. Eu morrendo e eu não sabia? Lembrei que estava pelado porque era nu que eu dormia. Fiquei tonto de vergonha. Tapei os olhos com a mão. Com a esquerda, cobri minhas coisas. Pensei na freira corando.

Descobri devagarinho que a freira tinha ido embora. Pensei: é susto de pinga, de tequila defumada com lances que eu nem te conto. Fechei a porta depressa. De quatro, subi a escada. Meu quarto tremegirava. E se existisse uma cripta? E se eu estivesse morrendo tão longe do meu carinho? E se a casa contivesse um claustro medieval cheio de medo em 3D?

 Bateram de novo à porta. Ouvi um som esquisito de saias pretas entrando, de saias pretas dizendo tristes bênçãos numa cripta. Rolei degraus rumo à sala, esgueirei-me ao subsolo inexistente antes disso. Encontrei o padre e as preces sobre o corpo também eu.

Éramos dois eus na cripta: um olhando, outro morrendo.

Sou egoísta, sei disso. Para mim, só eu me importo. Fugi com medo de ver meu fim tão jovem, tão bêbado. Abandonei a república, o estudo, o medo e a marra. Voltei à minha cidade.

Cidades são seres vivos. A minha se pensa grande, recebe jornais de longe.

Num desses jornais eu vi a foto do outro eu. Com surpresa constatei: continua a minha cara. Também se chama Rodrigo, morou onde eu já morei, seguiu quando desisti. Esse eu sobreviveu, graças a bênçãos obscuras, numa noite alucinada. Formou-se em ciências etílicas, trabalha como “urbanista”, projetando videogames. E… nem sabe que eu existo.

Agora sou dois, no mínimo. Coisas de minha cidade que me envia de emissário a outros cantos distantes mesmo tendo que partir-me quando caminhos exigem-me a arte de bifurcar-me.

 

DE ACORDO COM  RODRIGO 2:

 Cidades são muito estranhas pelas coisas mais malucas que passam à nossa porta. Num dia de tempestade, abandonei meu trabalho num jogo medieval e fui até a varanda, olhar o mundo real. Tinha uma linda enxurrada e nenhum vizinho à vista. Docemente flutuando, uma garrafinha PET seguia rumo ao bueiro. Interrompi seu percurso e notei, estarrecido, que dentro havia um pen drive! Um pen drive na garrafa!? Sim, e dos mais modernos.

Mesmo trabalhando em games desde minha adolescência, eu jamais vira um projeto fabuloso como aquele que me chegou flutuando dentro daquele pen drive. Era o roteiro de um jogo com cenários, personagens… E quem seria tão doido a ponto de jogar fora um trabalho assim inédito?

Ouvi gritos lá de fora. Era uma moça de branco, tateando na enxurrada. “Você viu uma garrafa?”, perguntou quando me viu. “Garrafa? Claro que não. Como assim uma garrafa?”, perguntei bem sonsamente. “Meu namorado pirou e botou numa garrafa todo o trabalho dele. Agora ele está deitado lá no sótão da república. Tá passando muito mal. Acho até que vai morrer.”

Deixei a garota revirando o bueiro, vesti minha capa de chuva preta e fui até a república, ver como estava o rapaz. Era um daqueles tontos que sempre pediam estágio na minha firma.

Garanto que me esforcei. Ele até sobreviveu, mas um tanto diferente. Perdeu partes da memória e do juízo, que, aliás, sempre foi pouco. Seu projeto é um sucesso sob minha assinatura.

Cidades são muito estranhas. Ontem mesmo ele voltou, o meu xará Rodriguinho. Disse que se identifica com meu trabalho e comigo. Trouxe várias sugestões para aprimorar meus jogos. Seria até crueldade eu não querer dar ouvidos a quem sonha sua vida como se vivesse a minha.

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Carla Ceres é escritora

16 thoughts on “Subsolo na garrafa – por Carla Ceres

  1. Muito muitíssimo bom o seu conto, Carla. Gosto de histórias com mais de um eu e sempre gosto mais de um que do(s) outro(s), mesmo sabendo que ele não seria esse um sem outro.
    Parabéns pelo prêmio. Você é mesmo fantástica!

  2. Sensacional suas várias abordagens. De psicológicas, físicas e de caráter que hoje, se perdeu e muito, no Ctrl C X Ctrl V … Plageia-se de tudo um pouco nesse mundo em que nem bençãos, freiras ou padres excomungam tais criaturas! Roubam deslavadamente “nossos tesouros intelectuais” e sequer ficamos a ver navios… pois tudo ocorre em pen drives e potentes servidores que abrigam “muitos Rodrigos 2” … Já o Rodrigo 1 me faz pensar na falta de coerência com o que se quer na vida e da vida!! Nossa… esse discurso todo, Carla, só para dizer-lhe que “me vesti de bruxinha” li e reli seu conto, amei, e dei tratos à minha imaginação para entregar-lhe o “Troféu” mais que merecido! M A R A V I L H A!
    Bjs. Célia.

  3. Oi, Célia… Estou um pouco confuso. Deixei um comentário aqui no Diário do Engenho, mas parece que ele sumiu… De qualquer modo, só tinha passado aqui para saber se você o tinha respondido. Renovo meus parabéns pelo prêmio…

    1. Oi, Geraldo! Às vezes, os comentários demoram um pouquinho pra aparecer. Precisam ser liberados pelo pessoal do site. Por isso, eu sempre venho ver se chegou algum novo pra responder. Fiquei feliz por você gostar do conto. Abraço e muito obrigada!

    1. Muito obrigada mesmo, Érico! Sem dúvida, as palavras foram muito escolhidas. É um conto curtinho que deu trabalho. Fico feliz quando um leitor sofisticado percebe. Beijos!

  4. Olá Carla, e que tudo esteja bem contigo!

    Brilhante texto, como sempre!
    Ao estilo do seu melhor eu, demonstra que os eus desta vida somente existem por conta dos nós!
    Parabéns, sem dúvida o prêmio foi merecido e está em boas mãos!

    Agradeço pelas visitas e por compartilhar teus belos escritos, e desejo que tenha um viver de intensa felicidade, abraços e até mais!

  5. Prêmio mais que bem concedido, para um conto moderno, inteligente, incrivelmente inventivo . Senti-me vendo um filme, imaginando os personagens, as cenas, os objetos, a luz, a ação…
    Pensando melhor: vislumbro um extraordinário “curta-metragem”.
    Parabéns, linda amiga!

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