Um desmaio na multidão – por Carla Ceres

Um desmaio na multidão – por Carla Ceres

desmaioCentro da cidade, ombros abrem caminho, cotovelos acertam costelas, testas suam. A multidão estressada tenta, em vão, desviar-se de si mesma enquanto dribla os entregadores de panfletos, pula buracos e se protege da realidade, falando no celular, aos gritos. Um engradado de garrafas de cerveja quase colide com um botijão de gás. Os carregadores que os levam às costas trocam grunhidos breves, pois lhes falta fôlego para desperdiçar com palavras.

O vendedor de biscoito de polvilho “Um por cinco, três por dez, freguesia!” fica sem palavras quando um homem de terno pergunta “O senhor vende água?” e desmaia sobre a banca. Três sacas de mercadoria esmigalhada e gente se juntando ao redor. “Morreu?” “Foi assalto?” “Levou tiro?”

“Não sei. Acho que tá vivo. Me pediu água e caiu”, responde o vendedor. “Eta, biscoitinho salgado esse seu, hein, tio! Matou o homem de sede”, graceja um motoboy. “Tem que chamar a polícia”, “Melhor a ambulância”, “Tem que afrouxar a gravata, tirar esse terno”, “Melhor fazer boca a boca”, “Olhar na carteira, ligar pra família”, “Boca a boca num morto, não faço nem morto”, “Mas bem que, se estivesse vivo, você fazia, né não?”

Uma das fotos que vão pro Facebook mostra o homem sem gravata nem paletó, com o colete aberto e os bolsos das calças virados para fora, deitado numa poça d’água. “Compartilhem esta foto, por favor! Esse homem tá caído aqui, sem identificação, porque roubaram a carteira dele. Precisamos encontrar a família. Não adianta só curtir. Tem que compartilhar.” Os comentários pipocam: “Pronto, compartilhei. Ele está sangrando?”, “Compartilhei. 🙂 Faz massagem cardíaca”, “Que lindo o meu sobrinho querido ajudando as pessoas no Feice! A titia te ama, viu? <3 <3 <3”, “Tá compartilhado, mas vocês têm que fazer alguma coisa enquanto a ambulância não vem, senão ele vai morrer. :(”

Fazem muitas “algumas coisas” porque fazer coisas, além de solidário, é divertido. Percebendo que o homem não reagira aos copos de água “torneiral” que lhe derramaram no rosto, uma aposentada segura um espelhinho de maquiagem diante do nariz do sujeito. “E aí, tia? Ele tá respirando?”, pergunta um moleque. “Tá sim. Graças a Deus!” responde a velha. Tapinhas no rosto, massagem nas mãos, orações, piadas e, finalmente, a ideia madrasta: um comerciante local possuía uma arma de choque, dessas que a polícia usa e que as pessoas comuns só compram ilegalmente. “Ora, quem não tem desfibrilador caça com arma de choque. É quase a mesma coisa, não é?”

A ambulância encontrou o homem na calçada, mortinho da silva. Parece que seu marca-passo se estranhou com o desfibrilador improvisado e pifou. Coisas que acontecem. Valeu a intenção.

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Carla Ceres é escritora

carlicatura Carla Ceres

23 thoughts on “Um desmaio na multidão – por Carla Ceres

  1. Poderia ter um final feliz! FELIZ!? FELIZ!? Nem tanto. Poderia ser feliz assim mesmo do jeito cotidiano. Alguma coisa mais realista mesmo! Sem obrigação de FINAL FELIZ folhetim! Ahhh… que pena do coitado do homem! Mas valeu o alerta Carla Ceres!

  2. Oi, Carla. Seu conto é tão bom que eu comecei a ficar afobada com as reações do povão. Histórias assim acontecem muito. Uma pessoa querida minha morreu após cair de moto porque os observadores curiosos não deixaram ninguém mexer nele desmaiado (afinal é essa a recomendação q a gente ouve) e ele foi asfixiado por aquela correa do capacete. Não sei se foi bem assim, é o que me contaram…

    1. Que pena, Regina! Pode ter sido assim mesmo. Uma vez, quase apaguei por causa da correia de um capacete de escalada. Vou ficar esperta com isso, na hora de socorrer alguém. Beijos!

  3. “Emochocante”!!!! Ler uma crônica, feita em instantes, a partir de uma entrevista, além do prazer do momento, sabe-se nítido, deparar-se com um Grande Talento!!! Que as Forças Benfazejas do Universo continuem a prodigalizar-te com essa pena ágil, leve, extremamente criativa. Parabéns!!!. Ralph

  4. Olá, Carla
    Óptima ficção, que bem podia ser real (e muitas vezes é).
    Não vou aqui referir, de novo, o seu talento para “manusear” as palavras.
    Já o fiz inúmeras vezes e é por demais conhecido. Mas não posso deixar de dizer, uma vez mais:
    Sinto sempre um prazer enorme em ler o que você escreve!
    O que é certo é que a sua “fantasia” torna-se real muitas vezes.
    Parabéns e um grande beijinho
    Link para o meu blog principal
    Mariazita

  5. Olá prezada Carla, e que tudo esteja bem!

    Como sempre digo quando cá venho, eu não me atrevo a negar que teus escritos sempre são deveras perfeitos, e sempre a sua maneira com humor e palavras escritas de maneira correta expõe neste espaço a realidade em que nós vivemos.
    É bem isso mesmo, as pessoas estão cada vez mais com mórbidos sentimentos, e em momentos onde antes haveria tristeza hoje podemos observar alguns querendo se promover e aparecer, mas, é a natureza “humana” que mais demonstra sua desumanidade!

    Mas como ninguém morreu, e nenhum biscoito de polvilho deixou de ser rechonchudo para virar pó, sendo assim cá sempre nos encanta com teus escritos sempre e eu agradeço por compartilhar tão belos e inteligentes textos, e pela amizade!
    E desejo que seja sempre intenso e feliz o teu viver, um grande abraço e, até mais!

  6. é ficção, mas bem o senso comum é assim mesmo,será que não tinha alguém para dizer que aquilo não era seguro, já que desfibrilador é diferente de arma de choque.
    Addorei o texto, S2.

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